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Quem somos nós, quando ninguém está olhando?


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Uma pergunta clássica permeia quase todos os treinamentos de compliance nas empresas. Ela fica na memória como um critério para avaliarmos a adequação (ou não) das nossas decisões: se o que você está fazendo se tornasse trending topic nas mídias sociais, você ainda tomaria a mesma decisão? Faria as mesmas coisas? Diria as mesmas palavras?

Esta é uma reflexão incisiva pois sinaliza a transição de uma conduta pautada pela consciência, para uma conduta pautada pela honra, ou seu oposto, a vergonha. É como se ela nos conduzisse da dimensão da consciência moral (a voz interna que nos ajuda a discernir entre o certo e o errado) à dimensão da honra (a voz da sociedade). Se a consciência internaliza a noção de justiça, a visibilidade, com sua perspectiva de honra ou ameaça de vergonha, agrega ao algoritmo moral a voz do julgamento público.

A primeira dimensão revela o que somos de verdade, quando ninguém está olhando. A segunda, nos lembra que as fronteiras entre o privado e o público estão ao alcance de um post.

Um episódio, longe de raro, mas ainda assim emblemático, ilustrou esta questão nas últimas semanas. Em 17 de dezembro o Papo de Mãe, um canal sobre vida em família, trouxe à luz um julgamento na Vara de Família, conduzido pelo Juiz Rodrigo de Azevedo Costa.

Na audiência, ao ser questionado sobre o fato de uma das partes ser vítima do ex-companheiro em inquérito que apura violência doméstica, o juiz afirma: “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe(sic) eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”.

Esta afirmação, entre outras indignidades proferidas pelo mesmo Juiz, gerou indignação em diversas plataformas sociais e reações por parte da Comissão da Mulher Advogada da OAB, da própria Maria da Penha e da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Para quem acompanha a trajetória das mulheres vítimas de violência, o único aspecto deste episódio que o torna uma novidade é o fato de a audiência ter sido filmada e publicada.

Condutas graves como esta são recorrentes em tribunais de norte a sul deste país, reproduzindo a prática da revitimização que faz com que as mulheres coloquem em dúvida a eficácia do Sistema de Justiça, o que compromete o seu efeito emancipador.

Na semana passada, a última edição da tradicional pesquisa Trust Barometer publicada pela Edelman, revela a erosão da confiança em todo o mundo. O contexto que vivemos é caracterizado por uma verdadeira infodemia, gerando profunda desconfiança nas lideranças institucionais e nas diferentes fontes de informação. A pesquisa mostra ainda que as empresas substituíram o governo como a instituição mais confiável, além de serem consideradas duas vezes mais competentes na resolução de problemas.

Considerando que a confiança é o que viabiliza a cooperação entre as pessoas, o principal diferencial adaptativo da nossa espécie e ingrediente indispensável ao funcionamento das instituições, das empresas, da sociedade e da economia, como seremos capazes de lidar com os desafios excepcionais da recuperação pós-pandemia sem começarmos pela reconstrução da confiança? Reconstruir a confiança implica em repactuar o compromisso com os princípios que resguardam a dignidade das pessoas e impulsionam o desenvolvimento social.

Mas talvez exista um aspecto positivo nesta transparência radical trazida pelas audiências virtuais. Elas trazem a possibilidade da exposição dos profissionais e autoridades que trabalham no sentido inverso ao seu mandato público.

Talvez a noção de que tudo o que é dito, é dito em público, podendo ganhar repercussão global em questão de horas, possa dar voz e alcance aos cidadãos comuns, outrora desprovidos de influência, em cuja defesa e proteção as instituições foram criadas. Talvez a visibilidade aumentada das audiências virtuais possa trazer à consciência de um magistrado uma noção mais clara de que se sua fala em pleno exercício do poder que lhe confere a sociedade causa tamanha reação, talvez ele o esteja usando de forma personalista e não nos termos do bem comum.

Se esta noção, que deveria ser evidente pelo exercício da consciência, for resgatada pela sensibilidade à honra, ou seu oposto a vergonha, ainda assim, terá feito a diferença, e a transparência radical do novo mundo do trabalho poderá ser um vetor de resgate do compromisso com as leis e com os princípios éticos que ainda são a nossa melhor aposta para superarmos os desafios do novo ano.

Tempos sombrios realçam pequenos pontos de luz. Quisera a consciência de serem vistos fazer com que mais magistrados possam encarnar a justiça.  Quisera a noção da transparência nos convide a sermos a melhor versão de nós mesmos, até que se torne a nossa única maneira de agir no mundo, mesmo quando ninguém está olhando.

 

Fonte: Exame

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