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‘Não divulgar dados é tentar achar a chave com luz apagada’, diz professor


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Marty Makary está preocupado com a situação do Brasil. Professor da Universidade Johns Hopkins e especialista em transparência na saúde, o médico americano criticou a limitada divulgação de dados sobre a pandemia pelo governo de Jair Bolsonaro e diz que ficou desapontado ao ver dois ministros “serem empurrados” para fora do cargo por seguirem a ciência.

“Toda nossa estratégia é guiada por dados. Sem eles, estamos voando às cegas”, diz em entrevista à reportagem. “Não divulgar os dados é como tentar encontrar a chave com as luzes apagadas.”

Autor de “Unaccountable” -um dos livros mais vendidos dos EUA-, o médico diz que esconder resultados negativos faz parte de um sistema quebrado, com regras e processos falhos, visto inclusive nas mais prestigiosas publicações científicas do mundo.

Na sua avaliação, editores e pesquisadores formam um “clube de negócios” no qual somente quem alcança resultados positivos é recompensando, o que pode levar à manipulação dos dados de estudos importantes.

Em uma pandemia, diz Makary, é fundamental que haja informação de qualidade disponível para que pessoas se mantenham saudáveis para além das orientações do governo.

PERGUNTA – Um dos principais temas de “Unaccountable” é como divulgar dados de pesquisas científicas. Qual é a importância da transparência nesse processo?

MARTY MAKARY – Infelizmente, a disseminação das informações científicas tem sido desafiada por falta de transparência e um sistema que não valoriza adequadamente as coisas certas. Pesquisadores são recompensados quando encontram resultado positivo e não pelo contrário, mas não é assim que o processo científico deve funcionar. Não devemos ter incentivos tão fortes para encontrar uma associação, porque o que acontece é que os pesquisadores podem falsificar os dados, esticá-los, projetar os ensaios de uma maneira que cria viés injusto. Instituições acadêmicas geralmente promovem pesquisadores que publicam nas grandes publicações, e as grandes publicações publicam apenas estudos científicos que mostram uma associação positiva.

P – Como isso funciona quando as descobertas são negativas?

MM – Temos muito pouco incentivo para repetir ensaios, porque o sistema está constantemente atraindo pessoas para publicar resultados positivos. Existem vários grandes ensaios clínicos randomizados que, quando testados novamente, mostram que o estudo original teve o resultado errado. Isso é chamado de reversão. Uma revisão abrangente de ensaios clínicos randomizados em três revistas médicas (Journal of the American Medical Association, Lancet e New England Journal of Medicine) revela 396 reversões em 3.000 artigos avaliados. São muitas. Isso nas três principais revistas médicas, que supostamente têm os mais altos padrões. Quando elas têm muitos estudos revertidos, isso mostra as falhas do processo.

P – O que isso significa para o sistema de pesquisa?

MM – Nosso sistema de disseminação de pesquisa está quebrado. Você faz uma pesquisa sem supervisão, ninguém mais olha os dados, exceto você, e depois você reporta os dados para a publicação, e ela diz que você precisa assinar que cumpriu tais padrões, e muitos assinam mesmo que não entendam o que estão assinando. E, depois, as publicações levam um longo tempo para revisar os resultados, não os dados originais, a validade, a precisão do que você pretende fazer, mas apenas os resultados. E levam de seis meses a um ano com essas regras. E você só pode enviar o estudo a uma publicação de cada vez, ao contrário, desqualificam você. Essas regras foram criadas para empresários ganharem dinheiro, não são regras estabelecidas no interesse de divulgar pesquisas. Quando a resposta sai, o estudo muitas vezes já está velho. Estamos jogando o jogo dessas publicações.

P – É um negócio?
MM – Sim, é um negócio exceto que eles não pagam os médicos que estão revisando a pesquisa e criam um clube, como: “amos publicar sua pesquisa porque você foi bem e revisou muita coisa para a gente”. São favores. Minha preocupação é de que isso não seja bom para a ciência.

P – A FDA, agência que regula medicamentos nos EUA, revogou a autorização de uso emergencial da hidroxicloroquina para tratar Covid-19. Como o sr. viu os estudos sobre esse medicamento?

MM – Na medicina às vezes temos uma hipótese, mas não temos os recursos para testar a hipótese. Em uma crise, permitimos que algo seja usado quando os médicos têm uma hipótese que pode ajudar. Confiamos no que chamamos de sabedoria clínica à beira do leito, para nos permitir inovar e experimentar coisas novas. Não tenho nenhum problema com o uso off-label, mas existe um problema quando isso vira um entusiasmo desproporcional, como a de que a hidroxicloroquina pode fornecer um benefício no caso de Covid-19. E então esse entusiasmo ultrapassa a ciência ou até substitui a ciência. Agora temos uma resposta clara sobre a hidroxicloroquina: apesar de muitos estudos tentando identificar benefícios, não há benefícios [no caso de Covid-19].

P – O governo brasileiro estava atrasando e escondendo os números sobre a Covid-19 no país, e agora tem limitado essa divulgação. Como a omissão ou a baixa qualidade dos dados pode impactar no combate à pandemia?

MM – Toda nossa estratégia na pandemia é guiada por dados. Sem eles, estamos voando às cegas. Com os dados, aprendemos que as pessoas mais velhas correm mais risco, aprendemos os benefícios dos anticoagulantes, gerenciamos os respiradores. Os dados são a chave de tudo, e não mostrar ou não divulgar os dados é como tentar encontrar a chave com as luzes apagadas. Mas você não pode negar o que está acontecendo, porque as pessoas veem os hospitais ficando sobrecarregados, os profissionais de saúde gritando que está errado, para tomar cuidado com o vírus.

P – No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tem negado.

MM – Os dados sozinhos falam por si e podem ser muito alarmantes. Ocultar os dados é uma maneira de incentivar as pessoas a viverem suas vidas sem se preocupar com o vírus e é uma maneira de empurrar a economia às custas dos trabalhadores que estão em risco.

P – Qual é o impacto de um governante basear suas decisões em impressões e não na medicina e em métodos científicos, como fazem Bolsonaro e Trump?

MM – Trump é criticado por não ser científico. Na realidade, costuma esclarecer que está propondo ideias, mas, no fim das contas, diz que cabe aos médicos e aos especialistas tomar as boas decisões. Não vejo isso no presidente Bolsonaro. Vejo uma tensão entre Bolsonaro e o Ministério da Saúde que não vejo nos EUA. Na medicina, os médicos sempre foram respeitados por falar honestamente, interessados em ajudar. E, ao ouvir os dois ex-ministros da Saúde do Brasil, ficou claro que eles falavam honestamente, com base na ciência. Fiquei muito desapontado ao ver os ministros sendo empurrados para fora do cargo.

P – Sem diretrizes claras baseadas na ciência por parte do governo federal, como a população brasileira pode agir diante da pandemia?

MM – A informação é poderosa, e pessoas que têm a informação sobre a necessidade do distanciamento social e do uso das máscaras para interromper a transmissão do vírus podem ser capacitadas para permanecerem saudáveis. Minha preocupação é que as informações não chegam aos mais pobres e vulneráveis no Brasil, como os mais velhos ou os que moram nas favelas, em lugares com densidade altíssima de pessoas.

Fonte: O tempo

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