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Estupro: médicos deveriam ter desconfiado de conduta de anestesista


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O caso do anestesista preso por estuprar uma mulher durante uma cesárea suscitou debates no meio médico sobre outros aspectos da conduta do profissional, como o uso de sedação excessiva nas pacientes.

Uma pergunta que tem sido feita é: como o hospital não percebeu antes que havia algo de muito suspeito na atuação do profissional? A Folha conversou com médicos e gestores para entender como trabalham essas equipes.

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Anestesistas têm total autonomia e responsabilidade no planejamento da sedação dos pacientes, mas é comum em hospitais de ponta que o ato seja discutido com a equipe médica dentro de check-lists pré-operatórios. Nessas instituições também há protocolos indicando o plano anestésico para cada tipo de cirurgia. Alguns hospitais têm equipes próprias de anestesistas, o que facilita o entrosamento.

Mas o que se vê com mais frequência em serviços públicos e privados são anestesistas que prestam serviços em vários hospitais –como era o caso de Giovanni Quintella Bezerra, 31, preso em São João de Meriti (RJ)– e não têm vínculos com os médicos com os quais vão trabalhar no centro cirúrgico. Um não interfere no trabalho do outro.

Cabe ao anestesista fazer uma avaliação pré-operatória para verificar se o paciente tem algum risco, como alergias, e explicar como será o procedimento. Também é responsável, após aplicar a medicação, pelo monitoramento das funções vitais do paciente durante a cirurgia, como pressão arterial e respiração.

“O cirurgião pode até estar perto, mas não está checando o que o anestesista está fazendo, por exemplo, a dose de medicação. O planejamento é dele. Um não se mete no trabalho do outro até por falta de perícia mesmo”, explica o cirurgião do aparelho digestivo Diego Adão Fanti Silva.

Ao receber um sinal positivo do anestesista de que o paciente já está sedado, a equipe cirúrgica coloca uma barreira, chamada de campo ou barraca, que separa o anestesista de quem executa a operação.

“Como ele fica preenchendo muito papel, infunde medicação, mexe nos monitores, isso atrapalha quem está operando. Então a gente sobe um campo para não ver essa movimentação periférica. O cirurgião tem que estar muito concentrado no seu trabalho”, explica Fanti Silva.

Mas, segundo ele, essas barreiras têm aberturas nas laterais que permitem que outros profissionais na sala cirúrgica vejam a atuação do anestesista. No caso de Bezerra, depoimentos apontam que ele utilizava dois campos cirúrgicos para impedir que a equipe visse o momento em que ele colocava seu pênis na boca da paciente.

Sinais

Na avaliação de gestores de saúde ouvidos pela Folha, condutas como aplicar medicação superior à usada pelos demais colegas e pedir que o acompanhante saia da sala deveriam ter despertado suspeitas no restante da equipe médica, assim como ocorreu com a enfermagem, que armou o flagrante.

Para Francisco Balestrin, presidente do sindicato paulista dos hospitais, clínicas e laboratórios, esse cenário todo mostra que há falta de governança clínica nos hospitais. “Você precisa ter equipes que estão sempre analisando resultados institucionais, por exemplo, a utilização de anestésicos para ver se não estão sendo consumidos de forma inadequada, e fazendo reuniões para analisar caso por caso.”

Em geral, segundo ele, quem faz melhor esse acompanhamento são instituições que têm processos de certificações com foco na estrutura dos hospitais, nos processos e nos resultados da assistência ao paciente. Nos EUA, 90% dos hospitais são acreditados.

No Brasil, dos cerca de 6.000 hospitais existentes, apenas 5% têm processos de certificações. “Se aqui tivéssemos instituições estruturadas e organizadas, fatos como esse [atuação criminosa do anestesista] poderiam ser identificados antes.”

De acordo com o cirurgião Sidney Klajner, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, em relação ao excesso de sedação, o alerta poderia ter vindo da farmácia do hospital. “Como está saindo tanto sedativo para uma cesárea?”. A sedação total de mulheres para o parto é excepcional e pouco recomendada.

Nos EUA, já existem máquinas de dispensação de medicamentos dentro das enfermarias e centros cirúrgicos, abastecidas pela farmácia dos hospitais, de acordo com a prescrição, o que ajuda a controlar eventuais abusos. “Tudo o que o anestesista pega fica registrado na máquina”, diz Klajner.

Também no Einstein, as salas cirúrgicas têm câmeras, que mostram a circulação na sala e comportamentos, como a higiene correta das mãos e se algum monitor foi desligado. “A inteligência artificial junta esses dados. Se um paciente não recebeu analgésico e no prontuário eletrônico dele há indicação de que ele está com dor, o sistema dá o alarme”, explica.

Uma outra questão que tem sido debatida é a atuação das escolas médicas nos casos de assédio sexual ou de estupro.
“É uma grande preocupação as escolas médicas não notarem essas atitudes suspeitas ou, se notam, banalizam e não tomam uma atitude. Deixam esses indivíduos se formarem e depois abusarem da confiança dos pacientes”, diz a médica Maria Ivete Castro Boulos, coordenadora do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Para ela, é improvável que o anestesista tenha ficado seis anos no curso de medicina e depois na residência e nunca tenha dados sinais suspeitos.

Em 2014, Boulos coordenou uma comissão dentro da USP que investigou um estudante de medicina acusado de dopar e estuprar seis estudantes da universidade. Ele chegou a ser suspenso por 18 meses, mas conseguiu se formar e obteve o registro profissional em Pernambuco. A punição de suspensão foi parecida com a de uma aluna que colou na prova na mesma instituição.

O médico foi absolvido da primeira denúncia, mas cinco outras estudantes o acusaram de estupro. Isso levou a um novo processo, ainda em tramitação. De acordo com o Jornal do Campus, de 2019, o médico atuava em uma maternidade em Pernambuco.

“A universidade não pode prender ninguém, mas ela decide se quer ou não uma pessoa com essas características em suas salas de aula. Só que desconfiam da vítima.”

Durante a CPI dos Trotes, instaurada em 2014 na Assembleia Legislativa de São Paulo para apurar relatos de violências físicas e discriminações em universidades paulistas, mais de cem casos de estupro na USP foram descritos no relatório final. (Claudia Collucci/Folhapress)

Fonte: O tempo

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